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Editor de Conteúdo

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julho ​ ​de 2020​​​​​
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​ Instituto de Educação da Universidade do Minho


Silêncios ensurdecedores em tempos sombrios[1]

Alberto Filipe Araújo[2]

 

A expressão "tempos sombrios" tem uma história densa, ou não fosse ela cunhada por Bertolt Brecht no seu poema "An die Nachgeborenen" (1939 - "À posteridade"/"Aos que vierem depois de nós"): "Wirklich, ich lebe in finsteren Zeiten!" ("Realmente, eu vivo em tempos sombrios!" – tradução nossa). Também foi usada por Hannah Arendt para justamente intitular uma das suas obras - Homens em Tempos Sombrios (1960). Se a precedermos do oximoro "silêncios ensurdecedores", então o nosso título já indica que a nossa visão do mundo, assim como a grande apreensão que experienciamos face ao tempo pesado que estamos a viver, afirma-se deveras pessimista senão mesmo trágica.

Perceber-se-á então que os silêncios nestes tempos sombrios e incertos não poderão deixar de ser ameaçadoramente ensurdecedores e paradoxalmente monótonos: "E que nada é menos espetacular que um flagelo e, pela sua própria duração, as grandes desgraças são monótonas. Na lembrança dos sobreviventes, os dias terríveis da peste não surgem como grandes chamas intermináveis e cruéis e sim como um interminável tropel que tudo esmaga à sua passagem" (Albert Camus, A Peste, 1947). Silêncios contrariados, impostos, sempre recusados, sempre exorcizados, por aqueles e aquelas que teimam em viver apressadamente e que quando confrontados com um revés imenso, corporizado nada mais nada menos que por um morto-vivo (falamos do vírus conhecido pelo SARS-CoV-2), se confinaram num ritmo dolorosamente lento e já há muito esquecido pela voracidade de vidas corridas quantas vezes sem destino e despidas de história(s) sentida(s).

Um silêncio estranho, nada comum, e anunciador de tempestades varredoras de universos familiares. O mais duro de suportar é este tipo de silêncio gélido, desencarnado e não abraçado: um tipo de silêncio que muito se estranha, que muito assusta, que muito pânico causa, mas que nunca apazigua, antes se entranha à semelhança dos dentes pontiagudos de Drácula cravados no pescoço de Lucy ou de Mina. Nestes tempos sombrios todos somos Lucy ou Mina, fragilizados, expostos a um vampiro simultaneamente distante mas cruelmente tão próximo como é o caso deste coronavírus tão micro, aparentemente tão frágil, que se desvanece com a espuma de um mero sabão vulgar, mas impiedosamente tão sinistro como malévolo. Se assim ele, à primeira vista, parece tão frágil, não deixa, contudo, de ser tão terrivelmente ameaçador como tão teimosamente invisível. Hóspede indesejado que ousa aparecer sem ser convidado e, num tom jocoso, ousa mesmo sentar-se nos nossos corpos banqueteando-se e deliciando-se sadicamente com a nossa dor, com a nossa infelicidade, com os nossos medos mais ancestrais. Um coronavírus que se senta e adormece dentro de nós corroendo as nossas entranhas, esventrando-nos lentamente num silêncio, também ele ensurdecedor: silêncio de chumbo, "lutuoso" (trauervoll cujo equivalente inglês seria mournful), longo, demasiado longo que se confunde com uma eternidade agora tão próxima de realizar-se num presente eterno. Como uma alma danada, essa sinistra monstruosidade vampírica, nem viva nem morta, arranca-nos a(s) nossa(s) esperança(s) empalidecida(s) à(s) qua(l)is teimamos obstinadamente em nos agarrar, fazendo lembrar Robinson Crusoe, de Daniel Defoe (1719), além da sua obra A Journal of the Plague Year (1722), para não enlouquecermos de uma dor tão desesperada como impotentemente desastrada. Todos somos peregrinos, outros já tristemente moribundos, numa vida tornada um Hades sombrio e desolador, qual terra de cinzas, silenciosamente desencarnada. Tudo nos parece estranhamente irreal, exceto o medo, que nos atravessa cruelmente, de sermos, mesmo que imaginariamente, as próximas vítimas de uma Besta sanguinária. Ao medo junta-se igualmente o pânico, que também nos invade e que paulatinamente nos prepara para provarmos um medo ainda maior porque sabemos que a Besta, mais cedo ou mais tarde, nos devorará e nos vencerá na última partida de xadrez que com ela somos forçados a jogar (recordando a cena do Sétimo Selo (1957)) em que o cavaleiro joga o xadrez com a própria morte a fim de ganhar mais um tempo de vida. E assim a Morte silenciosa, tão temida como admirável, é anunciada contra a nossa vontade pela simples razão que todos, tal como Fausto confessou, temos um enorme e inequívoco medo de morrer. Todos sabemos que não somos imortais, por mais pactos que façamos com o Diabo (recordando a cena emblemática do célebre pacto que Fausto assina, no Fausto de Murnau (1926), com o próprio Mefisto-Diabo), mas todos perfilhamos a ilusão dessa mesma imortalidade onde a nossa hora será sempre adiada, seja por um pacto sonhado ou por uma jogada do Rei.


[1] A presente reflexão é uma versão abreviada de um artigo publicado no Diário de Notícias, 28 de maio de 2020. 

Acesso: https://www.dn.pt/pais/silencios-ensurdecedores-em-tempos-sombrios-12251851.html

[2] Professor Catedrático Aposentado do Instituto de Educação da Universidade do Minho (Braga – Portugal).

 






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